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Olá pessoal!

É raro eu escrever contos, e quando o faço, é para me inscrever em antologias. O fato é que gosto de me apegar a uma trama longa e me envolver com todas as suas complexidades, e é de meu feitio alongar tudo o que escrevo. Pra fazer contos dá um trabalhão compactar tudo em poucas páginas.
Bom, o conto que escrevi foi pra uma antologia, mas não consegui ser selecionado. Então, eu vou publicá-lo aqui. Não tive nenhum comentário a respeito dele, e gostaria de saber se está bom. Podem sair rasgando mesmo com a critica, hehe.

Ignoscência científica

Um jovem sonhador, um mero garoto órfão, brandia seu cabo de madeira, sonhando com toda a trama épica que sua imaginação produzia enquanto simulava os movimentos de um cavaleiro meneando uma espada, ou talvez, simplesmente, idealizando seu futuro. Uma brincadeira infantil capaz de resultar numa póstuma identidade. De fato, era o seu futuro.
O jovem, agora cavaleiro, marchava com sua tropa para a planície onde uma grande batalha entre seu reino e o exército adversário ocorreria. Embora fosse sua primeira história épica viver uma intensa batalha, sua inexperiência e seu idealismo oriundo de sonhos ingênuos de outrora transformariam a realidade em desilusão.
Calmon era o nome deste novato cavaleiro.
Assim como em sua brincadeira quando criança, o cavaleiro meneou sua espada, desta vez não-imaginária, contra seus inimigos, e com uma talentosa destreza conseguiu vencer todos aqueles que se opuseram contra ele. Mas apesar das vitórias alcançadas em cada afrontamento, algo de muito apreço era retirado do cavaleiro. Calmon percebeu que empunhar sua arma era o mesmo que se tornar um assassino. O que ele estava fazendo? O que ele pensou que estaria fazendo?
Sem família, viveu acreditando que a visão que um dia tivera dos cavaleiros reais desfilando pelas ruas do reino, demonstrando toda a sua imponência e importância, seria a solução para a sua solidão. Afinal, as pessoas aplaudiam os cavaleiros, reconhecimento este que um pobre garoto como Calmon não tinha, mas teria em breve, se tornando um deles.
Porém, dentro daquele cenário monstruoso e sangrento, que reconhecimento teria? Apenas as expressões agonizantes nos olhos daqueles que eram mortos por ele. Era isso que ele queria? Ser visto e elogiado como um guerreiro que não fazia nada mais que ser um peão no meio de um tabuleiro. Lutar pelo reino; pela honra; pela glória. Tudo não passava de um falso prestígio.
A espada de Calmon apresentava-se quase totalmente coberta de sangue nas mãos trepidantes. E como se o líquido pesasse mais do que aparentasse, suas luvas deixaram o cabo resvalar até a arma cair no solo. O cavaleiro parou de lutar, e quando se deu conta, seus inimigos já estavam praticamente aniquilados, estendidos sem vida pelo local de batalha.
Com seu exército saindo vitorioso, Calmon e os guerreiros remanescentes retornaram ao reino; o jovem cavaleiro regressando desalentado. Nem mesmo o incentivo de seus amigos sobre ser condecorado com vivas pelas pessoas do reino o alegrou, pois Calmon sabia que o problema não era este. E como pressentira, perfilar junto aos cavaleiros não lhe trouxe alegria, apenas mais sofrimento. E pensar que quando criança sonhava em estar no seu lugar de agora. Tudo uma besteira!
Ainda abalado, Calmon resolveu se enfurnar num bar e se afogar na bebida, deixando seu espírito navegar por um mar consternado. A memória dele matando seus inimigos, e as feições agonizantes que eles demonstravam antes da morte acometê-los... era pesarosa.
- Eu queria esquecer... Eu queria esquecer – murmurou ele com desgosto, solitário numa mesa.
- Com licença, jovem cavaleiro – aproximou-se alguém com a voz rouca. Portava uma capa que encobria toda a sua identidade. Calmon só pode ver o rosto senil do desconhecido através do alumio das velas na mesa.
O homem que se apresentou para Calmon mostrou-se interessado no jovem, e este, talvez sob o efeito da bebida, acabou revelando o motivo de sua angústia. Pecados: assassinara muitas pessoas e se arrependia de tais atos. Aquilo foi o suficiente para as intenções daquele encapuzado misterioso.
- Não gostaria de apagá-las? As lembranças que tanto lhe pungem – aliciou o indivíduo idoso.
- Quem é você? – indagou o cavaleiro.
- Eu sou um cientista.
Obviamente, Calmon desconhecia aquele termo, mas demonstrou interesse nas bizarras explicações do chamado “cientista” sobre como apagar a memória. Para ele, a tal “ciência” que o homem mencionara parecia ser mais um ritual de magia ou bruxaria, e o cavaleiro não pactuava com estas coisas. Porém, o cientista conseguiu convencê-lo de que o processo era fruto da evolução da mente humana, e não usava qualquer artifício mágico.
O cientista revelou que o próprio viera de uma terra muito distante de outro continente; um lugar desconhecido por muitos, e embrenhado nos segredos do mundo. Ele deixara seu povo e partira para desbravar o planeta – mais um termo incomum para o cavaleiro –, ao mesmo tempo em que realizava seus diversos experimentos. Contou que precisava de pessoas dispostas a testar sua nova invenção, e que Calmon era o mais indicado a esta tarefa.
Sem entender muita coisa, e com a mente nada sóbria, o cavaleiro aceitou a proposta.
Ambos saíram da taberna e rumaram a cavalo até as montanhas que ladeavam o reino. Cavalgaram até uma relva fechada, permeada de rochedos e pequenos planaltos, e na encosta de um deles, escondia-se a entrada de uma caverna profunda. Percorreram o caminho sombrio até chegarem numa grande porta, que só foi aberta através da impressão digital do cientista em um painel na parede, fato que fez o cavaleiro se assustar.
E se a porta escancarada, de modo “mágico”, o sobressaltou, Calmon quase teve uma crise de pânico ao observar o recinto. Lâmpadas que jorravam luzes intensas, inúmeros painéis, televisores, e equipamentos tecnológicos estavam apinhados por todo o local, mas era óbvio que ele não conhecia nada daquilo. Seus passos no âmbito futurístico ainda eram receosos, mas o cientista tratou de apaziguá-lo.
O anfitrião logo apresentou sua invenção, com um tom de orgulho. O cavaleiro olhou para uma espécie de elmo, cheio de fios conectados a um grande painel na parede.
- Não precisa ter medo. Vamos – incitou o cientista, louco para ver seu “brinquedo” funcionar.
Calmon despiu seu traje de cavaleiro, e deitou-se numa cama. Em seguida, o elmo foi posto em sua cabeça. Fechou os olhos enquanto ouvia o cientista dizer o que deveria fazer: se concentrar somente nas lembranças que almejava esquecer.
- É hora de apagar os seus pecados, jovem Calmon. Que a ciência lhe perdoe – disse o cientista antes de puxar uma alavanca, soltando uma prazerosa risada.
O sangue, os gritos, as expressões de pavor e dor, a espada manchada de carmesim, a culpa, os pecados; toda uma experiência de vida delida em poucos minutos. E um sono profundo fez o jovem dormir por horas, só acordando no meio da selva próxima a sua terra. Confuso, sem saber como fora parar naquele lugar, Calmon empertigou-se e retornou ao reino, onde eventualmente sustentou sua vida de cavaleiro.
Quanto ao cientista, para comprovar o funcionamento do elmo, cruzou duas ou três vezes com o cavaleiro na rua, que não o reconhecera.
Semanas depois, o cientista retornou no mesmo bar em que encontrara Calmon pela primeira vez, e para a surpresa dele, deparou-se novamente com o cavaleiro, solitário na mesa, em profunda lástima.
- O que foi que eu fiz? Meu Deus... Meu Deus...
O cientista tornou a se aproximar e perguntou o que havia de errado com Calmon. Assim como da vez anterior, o cavaleiro contou o seu problema – disse que matara inocentes de uma aldeia, inclusive crianças – e novamente foi compelido a aceitar a proposta do cientista. O cavaleiro teria sua memória retirada mais uma vez.
O "déjà vu" procedeu-se, e novamente o jovem retornou para sua vida de cavaleiro. O cientista ficou preocupado com o episódio. O elmo não apagara completamente as memórias de Calmon? Será que algum vestígio de sua lembrança passada desencadeara o mesmo evento? O elmo fora construído para este fim: eliminar as piores lembranças do ser humano, pois assim, ele não sofreria com os pecados cometidos, e teria uma vida de eterna felicidade. Atormentado por estas dúvidas, o cientista passou a frequentar aquela taberna por vários dias.
E após o novo retorno da tropa real de um combate distante, o jovem Calmon, sobrevivente de três batalhas, enfurnou-se no mesmo bar, amargurando seus novos pecados. Também no bar, estava o cientista, que ao contemplar a imagem do cavaleiro novamente, finalmente compreendeu o erro de tudo. Suspirou, e tornou a caminhar até o jovem desalentado que murmurava suas mágoas. Ao invés de perguntar qual era o problema, como nas vezes anteriores, o velho simplesmente pousou gentilmente a mão sobre o ombro do cavaleiro e disse:
- Meu jovem. Se algo está lhe afligindo, vá a uma Igreja. Lá, você irá confessar seus pecados a Deus, e não se culpará nunca mais.
E com isso, o cientista saiu do bar.
Calmon ficou estático, assimilando as palavras daquele desconhecido. E como este recomendara, o cavaleiro saiu em disparada até a Igreja. Acorreu até o confessionário e principiou a confissão de seus pecados. Quando terminou, ao sair pela porta da Igreja, sentiu-se muito mais leve. Então teve a consciência de que ser um cavaleiro não era mais o que ansiava. Calmon desertou de seu reino e começou a viajar pelo mundo, procurando um novo propósito para a sua vida que o fizesse encontrar felicidade verdadeira.
O cientista, em sua charrete cheia de objetos guardados, após partir do reino, parou à margem de um rio e fitou o elmo que tanto se empenhara em criar. Concluiu que sua invenção fora um fracasso. Um objeto tecnológico, que supostamente faria as pessoas esquecerem suas piores lembranças, e assim viverem uma vida mais leve; porém, o seu criador esqueceu-se de que estas lembranças amargas e pesarosas são cicatrizes que fazem as pessoas rememorarem suas experiências de vida, e que somente olhando para estas estigmas, as pessoas são capazes de evoluir.
E aprendendo com o seu erro, sorriu, e lançou o elmo no riacho. No final, o cientista criara um objeto inútil; pegando novamente a estrada, conscientizou-se que da próxima vez inventaria algo mais benévolo.
Porém, o cientista nunca saberá que o elmo que ele descartara foi achado numa margem muito distante daquele mesmo rio por mais uma criança sonhadora, brincando de cavaleiro. Ele pegou o acessório e o colocou sobre a cabeça, avivando ainda mais sua devaneia brincadeira. O elmo, ironicamente, deu ao menino o que o cientista almejara produzir com sua invenção: felicidade verdadeira.

2 comentários:

Anônimo disse...

Eu gostei do conto. No começo os personagens são apresentados de forma rápida e mesmo assim já fica claro o que atormenta o cavaleiro.

A minha única observação é quanto ao termo "deja vu". Acredito eu que ele está escrito de forma errada.

Luiz Fernando Teodosio disse...

Obrigado pela leitura. Fico contente que o conto tenha lhe agradado. Fiquei matutando se a qualidade estava num bom padrão.

Pelo o que procurei, se escreve "déjà vu". Obrigado pelo toque.